Não Binarismo de Género, por Sara Malcato
Cada vez ouvimos falar mais na pluralidade de géneros, nomeadamente nas pessoas trans, de género não-conforme e não binárias. Para as compreender é preciso clarificar e distinguir as noções de género e sexo, uma vez que, género e sexo são conceitos diferentes. O sexo biológico é o cruzamento de 3 dimensões, o sistema cromossomático, o sistema hormonal e o sistema reprodutor. Ou seja, a forma como os nossos cromossomas se organizam em XX ou XY (ou XXX, XXY, entre outros, como acontece em pessoas intersexo), juntamente com as nossas gónadas, que são responsáveis pelas hormonas como o estrogénio, progesterona e testosterona, e o nosso sistema reprodutor, que engloba a nossa genitália, determinam aquilo que se designa habitualmente como sexo biológico.
Já o género é uma construção social sobre o papel e as expectativas que as pessoas deverão adotar, perante o seu género. A identidade de género é uma característica interna, pessoal e subjetiva de cada pessoa.
O sexo que nos é atribuído ao nascimento (na maioria das vezes apenas pela observação da nossa genitália, ou seja, reduzindo o conjunto da nossa biologia apenas a 1/3 da mesma, porque ignora o nosso sistema cromossomático e gonodal) pode, ou não, coincidir com a nossa identidade de género. Atualmente, com a tecnologia que existe, conseguimos, ainda antes do bebé nascer, observar a sua genitália. É uma das primeiras perguntas que se faz a uma pessoa quando está grávida, o típico: É menino ou menina? O que estamos a questionar, na verdade, é se tem um pénis ou uma vulva. E, mediante a existência de pénis ou de vulva, vamos começar a criar uma séria de expectativas sobre aquela pessoa. O nome, as cores do quarto, as roupas, os brinquedos, tudo é decidido mediante este binarismo, pénis/vulva, menino/menina, azul/cor-de-rosa, calças/vestidos, bolas/bonecas, etc.
Quando há uma correspondência desse sexo biológico com a identidade de género que a pessoa estabelece sobre si, ou seja, quando a pessoa se identifica, do ponto de vista do género ao que lhe foi designado ao nascimento, consideramos uma pessoa cis (cisgénero). Se, pelo contrário, existir incongruência (total ou parcial) entre o sexo designado ao nascimento e a identidade de género, considera-se uma pessoa trans. Sendo que todas estas categorias deverão ser autodeterminadas, ou seja, são as pessoas que sabem quem são, e portanto, são elas que nos indicam se existe, ou não, esta incongruência, se se identificam, ou não, como trans.
Porém, ao contrário do que se considerava antigamente, ser trans não é simplesmente ter-lhe sido atribuído o sexo masculino ao nascimento e a pessoa se identificar com o género feminino ou vice-versa. À medida que vamos tendo mais liberdade para explorar, também vamos aumentando o nosso autoconhecimento sobre nós e desenvolvendo linguagem nova sobre outras formas de sentir e experiencias a identidade. Com esta exploração, surgem novas nomenclaturas e o não-binarismo é um desses exemplos.
Ser-se uma pessoa não binária, significa que, independentemente do sexo atribuído ao nascimento, o género não corresponde ao masculino ou ao feminino. Não se enquadra nesse binómio. Ou porque se identificam com características de ambos, ou porque não se identificam com nenhum, ou porque o seu género é distinto deste binómio, ou porque rejeitam a existência de género, ou porque fluem entre géneros. Não existe apenas uma forma de se ser não-binário, porque existem múltiplas maneiras de sentir os géneros. O masculino e o feminino são apenas mais duas das formas desse sentir. E, mesmo as pessoas que se identificam com o masculino ou com o feminino não sentem a sua feminilidade ou masculinidade da mesma forma e nas mesmas proporções.
Assim, reconhece-se que o não-binarismo é um termo guarda-chuva que abarca todas as pessoas que não se reconhecem os polos masculino e feminino.
Pronomes, Expressão de Género e Disforia de Género
Por ser um conceito global, pode gerar alguma confusão, nomeadamente no que toca às questões dos pronomes, do nome, da expressão de género e da disforia.
Para muitas pessoas não binárias, uma vez que não se identificam nem com o masculino, nem com o feminino, torna-se bastante difícil ouvirem referir-se a si desta forma, através do nome e dos seus pronomes. Assim, têm sido criadas estratégias para tornar a linguagem inclusiva, o que na língua portuguesa é um desafio, mas não é impossível. Por exemplo, umas das modalidades é tornando-a agénero, ou seja, em vez de usarmos o termo “amigos”, usarmos “amizades”, ou em vez de usarmos “o coordenador”, alterarmos para a “coordenação”. São alguns exemplos que permitem englobar todas as pessoas, nomeadamente as pessoas não-binárias. Também há quem sinta que esta forma invisibiliza a experiências das pessoas não-binárias, já que há quem tenha um género, só não é o masculino e o feminino. Para estas pessoas têm sido criados sistemas alternativos de linguagem inclusiva nomeadamente o sistema Elu, que consagra possibilidades para além do ele/ela, dele/dela, nele/nela, passando a elu, delu, nelu, amigues, coordenadories. Este sistema pode causar estranheza, e certamente acarreta uma mudança estrutural para que possa ser generalizado, porém, para muitas pessoas não-binárias é absolutamente fulcral o respeito da sua identidade. Para outras, o uso do masculino e feminino alternado é a solução ideal.
Também no que toca à expressão de género, ou seja, à adoção de símbolos externos tipicamente associados a um género (roupas, cabelo, barba, maquilhagem, etc.), pode ser bastante plural nas pessoas não-binárias. Há quem use um estilo andrógeno, há quem use uma expressão mais tipicamente associada ao masculino e/ou ao feminino. É muito variável de pessoa para pessoa, de género para género e da liberdade que as pessoas têm para se expressar.
Por fim, nem todas as pessoas não-binárias sentem disforia de género (sofrimento clinicamente significativo pela incongruência entre uma pessoa querer/ser/expressar/sentir um género que não lhe foi atribuído ao nascimento). Há pessoas que sentem esse sofrimento, nomeadamente com determinadas partes do seu corpo e, portanto, pretendem submeter-se a modificações corporais (terapia hormonal, lipólise, cirurgias, entre outros) para adequar o seu corpo ao seu género não-binário. Contudo, em que não sinta esta disforia e não tenha necessidade de enveredar por estas modificações.
Em suma, as pessoas não-binárias são diversas e plurais. Não devemos assumir o género e os pronomes de uma pessoa. Devemos sempre perguntar como é que a pessoa quer ser chamada. É importante ouvir a sua voz e validar a sua experiência. Até hoje, têm sido as pessoas não-binárias a moldar-se à sociedade polarizada, está na altura da sociedade se moldar às pessoas não-binárias para que sejamos uma sociedade verdadeiramente inclusiva, sem que estejamos sempre a cobrar às pessoas não-binárias justificações ou explicações sobre quem são. As pessoas não-binárias não têm de se justificar, é a sociedade, cada um de nós, que deve perceber, aceitar e reconhecer que a noção de género está em mudança.
Dra. Sara Malcato, Psicóloga Clinica, Sexóloga
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