As crianças têm sexualidade?
A sexualidade infantil sempre foi um tema tabu.
Mas, basta estar atento às crianças para perceber que a curiosidade pela sexualidade está lá desde o início: de onde vêm os bebés? Como é o que o pai e mãe os fazem?
Estas e outras questões acompanham a exploração do corpo, o mistério associado à diferença dos sexos e as masturbações infantis.
Quando, em 1905, Freud escreveu os Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, os ataques foram ferozes, levando o psicanalista e biógrafo do pai da psicanálise, Ernst Jones, a dizer que esta obra o tornou “universalmente impopular”.
A ideia de uma criança com pulsões, investimentos e representações sexuais ainda hoje não é pacifica. Mas, importa lembrar, a principal censura está no olhar nos adultos.
A verdade é que a sexualidade existe muito antes da possibilidade de “a praticar” e do prazer orgástico.
O comportamento sexual de cada um transporta sempre a sua história individual, mais ou menos, preenchida de prazeres e frustrações, desde o nascimento!
Ao afirmar que “a criança é o pai do adulto”, Freud salientava a importância da sexualidade infantil como molde do adulto sexual.
Ama-se por memória!
Diz-nos Álvaro de Campos no seu belíssimo “Poema de canção sobre a esperança”.
Neste sentido, o adulto irá amar, em grande parte, de acordo com a forma como viu amar, como amou e como foi amado na infância.
Dito de outra maneira, as escolhas (de objeto) do adulto são sempre, de alguma forma, influenciadas pelas primeiras relações (de objeto), isto é, os pais.
Não necessariamente numa busca de repetição. Às vezes, procura-se exatamente o oposto! Mas o sentido da escolha está sempre lá, como uma impressão digital.
Pensemos na sedução.
A sedução - condimento essencial ao amor e ao sexo, que visa criar desejabilidade e, assim, acender a chama que nos move em direção ao outro - está lá desde o início, na relação mãe-bebé.
Tudo começa na sedução maternal precoce e nos cuidados primários ao bebé: beijos, carícias, cantilenas e vocalizações ternurentas, estimulam as zonas erógenas do nascente, num jogo de prazer entre cuidador e cuidado.
Mais tarde, a criança vai ser seduzida pelo espelho e essa atração é de vital importância na formação do narcisismo saudável e na estruturação da identidade.
Toda a criança deve ser seduzida pelos pais, deve sentir-se desejada e amada, para melhor se amar e, mais tarde, poder amar os outros.
Desta perspetiva, a sedução é essencial à vida psíquica e ao ser que se quer desejante e desejado.
A qualidade dos vínculos do adulto também constrói os seus alicerces na infância.
A relação mãe-bebé é o protótipo da relação de intimidade em que duas pessoas comunicam através de diversas linguagens e sentidos, nuances bem conhecidas de psicoterapeutas e psicanalistas.
Se a felicidade, o sucesso e o prazer sexual da criança despertarem ansiedade, raiva ou conflito nos pais, esta experiência pode ser interiorizada pela criança que vai reprimir ou boicotar as hipóteses de sucesso que vão surgindo ao longo da vida.
Medos irracionais e autodestrutivos associados ao sucesso são frequentes em pessoas educadas por pais patologicamente competitivos em relação aos filhos.
Esta competição é muitas vezes não verbal, o que torna muito difícil a criança identificá-la e, por consequência, defender-se.
O infante que cresce neste caldo afetivo pode associar, inconscientemente, o sucesso à perda da mãe/pai ou do seu amor.
Já os “príncipes” e as “princesas” têm tendência a ter menos problemas deste tipo.
Significa isto que a criança que pode estabelecer vínculos seguros terá certamente mais probabilidades de ser o adulto confortável com a intimidade, com uma visão mais valorizada de si, do seu companheiro e da relação, assim como respeitar melhor as liberdades individuais.
Consta que um jornalista terá perguntado ao Ernest Hemingway: “Qual é o melhor treino de base para um escritor?”. Diz-se que terá respondido: “Uma infância feliz.”
Acredito que o mesmo princípio se aplica à sexualidade.
Acredito que se ama por memória.
“Guardo tudo,
Guardo as cartas que me escrevem,
Guardo até as cartas que não me escrevem –
Santo Deus, a gente guarda tudo mesmo que não queira (...)”
(Álvaro de Campos in Poema de canção sobre a esperança)
Dr. Pedro Fernandes, Psicólogo Clinico e Psicoterapeuta
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